quinta-feira, 16 de outubro de 2008

«Pierre Weil, meu Pierrinho»

De Lydia [Mensagem reencaminhada por Roberto Crema para a Rede UNIPAZ]

14.outubro.2008

É madrugada de terça-feira e as cigarras já começaram a cantar. Não consigo dormir. Lembro de meu amigo tão amado, o mais bem amado dos amigos, meu mestre, meu irmão de absurdos e graças. Sei que minha vida será outra sem a sua presença tão concreta em meu dia a dia....
Na noite da última quinta eu fui a sua casa com Luiz, meu esposo, onde ficamos juntos por umas três horas. Pierre nos recebeu em seu quarto, sentado em uma poltrona, ao lado da cama. Estava com uma aparência boa. Ele e Luiz ficaram por longo tempo brincando de contar piadas. Em meio aos risos, olhou pra mim e disse:

- Lydia, eu estou sentindo o cheiro da morte...

Falamos sobre a falta de ar, sobre o gastroenterologista e o cardiologista terem dito, naquele dia, que não haviam encontrado nada de errado. Compartilhamos sobre a nossa hipótese, a partir da leitura da bula de um dos remédios que ele tomava, que isso poderia ser um efeito colateral que passaria com a retirada dessa medicação... Falamos sobre o medo da morte e voltamos às piadas e às recordações:

- Vocês lembram da minha primeira casa em Brasília, em frente a Unipaz? Ela foi só um guarda móveis...

Pierrinho estava se referindo aos primeiros tempos de nossa Unipaz, quando conseguimos a Granja do Ipê como sede, onde eu resolvi ir morar, sozinha. Ele não acreditava nessa minha aventura e demonstrava preocupação:

- Como você vai deixar seu apartamento e morar aqui, sozinha?
- Pierre, nós acreditamos ou não nesse sonho?


Aos poucos, mineiramente, ele foi se desapegando de sua encantadora casa no Retiro das Pedras, em Belo Horizonte (...Na manhã de ontem, Maurício Andrés, nosso parceiro desde sempre, nos disse, enquanto velávamos o corpo de Pierre, que o mirante do Retiro das Pedras passará a ser denominado “Pierre Weil”). Naquele tempo, o Presidente da FunCipaz e Reitor da UnHI começou a ficar cada vez mais em Brasília, até vender sua casa mineira e comprar outra aqui, onde não habitou, já que também passou a residir na Unipaz, quando iniciamos a vivenciar uma experiência comunitária cheia de divertidas histórias.
Na noite de quinta Pierre jantou em nossa presença e comeu duas das frutas desidratadas que eu levei e que ele tanto gostava. O médico havia lhe dito que poderia comer de tudo, sem exageros, e ele continuava “bom de boca”. Como sempre cuidei de realizar seus desejos gustativos (uma semana antes ele desejou lagosta), lhe perguntei o que estava sentindo falta de comer e ele me disse que queria castanhas. Combinamos de voltar a nos encontrar no domingo, quando eu levaria as castanhas e traríamos novas piadas.

- Lydia, Aymara conseguiu falar com você?
- Sim Pierre, ela me disse que você pediu para que eu fosse facilitar o seminário na turma da FHB amanhã. Graças à Deus eu posso, não irei viajar agora. Eu estou entendendo que essa turma é sua e que, assim que você melhorar, você irá a Unipaz e voltará a assumi-la...

Ele olhou pra mim como se dissesse que eu estava me iludindo... Enquanto eu estava dando a aula, falando sobre a tristeza e a alegria de estar ali, ele fez sua passagem. Esperou só a Viviane, sua filha, chegar, e partiu. Quando saí da Unipaz, voltei a sua casa e o encontrei no mesmo lugar da noite anterior, em seu quarto, só que com o corpo já sem vida... O que me toca muito agora é constatar que ele fez a passagem exatamente como havia nos mostrado há 8 anos atrás, quando nos surpreendeu com o psicodrama de sua morte...
Nossa diferença de idade nunca havia nos espantado, até esse ano. Na noite de quinta Pierre voltou a compartilhar sobre isso:

- Luiz, você viu que a Lydia tem os mesmos números da minha idade, só que invertido? Eu estou com 84 e ela com 48. Como é que pode? Você parece minha mãe...

Nossa amizade sempre foi rica e amorosa... Pudemos ser muito um para o outro e eu agradeço a Deus por haver vivenciado esse encontro com tanta entrega. Nós nunca nos perdíamos e, mesmo nas minhas férias com a família, nos falávamos pelo telefone.
Pierrinho sempre nos disse que queria ser cremado. Sua história maior não era com a terra e sim com o elemento que nunca se turva ao limpar e, por isso, purifica e transforma como nenhum outro.. Seu corpo permaneceu entre nós por três noites no Espaço de Silêncio na UNIPAZ, quando foi homenageado de muitas formas, através das diferentes tradições espirituais. Recebeu flores do Lula, dos aprendizes da FHB, de tantos amigos...
Eu agradeço mais uma vez à vida por esse tempo. Eu precisei atravessar o vale das lágrimas e pude fazer isso com traqüilidade. Na madrugada de sábado para domingo, seu corpo precisou ser embalsamado com mais eficácia para aguardar a cremação. Gislaine Assumpção, nossa Gisa, ficou pertinho fazendo suas orações e conversando com as pessoas que estavam cuidando dessa tarefa. Compartilhou conosco que elas estavam impressionadas com a flexibilidade que continuava presente no corpo de Pierre:

- Esse corpo reage de um jeito diferente...

Segunda, bem cedo, todos os funcionários da Unipaz DF chegaram para se despedir e foi mais um momento inesquecível, onde cada um pode compartilhar suas lembranças e os sonhos da madrugada. Eu fui até o caixão, peguei nas mãos de Pierre, e mostrei como elas continuavam flexíveis.

- Eu entendo que é a consciência de Pierre atuando em seu corpo, a consciência que transformou a matéria... Vejam que esse corpo, já sem vida, continua a encarnar aquele que é uma dos princípios da transdisciplinaridade: rigor e flexibilidade... Quanto aprendizado para todos nós..

O momento da cremação e o lançamento das cinzas na cachoeira também foram muito bonitos. No final da tarde, na hora da Ave Maria, da Mãezinha do Céu, entraram na cachoeira os representantes de sua família biológica e espiritual. Enquanto espalhávamos as cinzas na água corrente eu dizia:

Os que morrerem
não se retiraram
Eles viajam
na água que vai fluindo.
Eles são a água que dorme.

Os mortos
não morreram.
Eles escutam
os vivos e as coisas
Eles escutam as vozes da água.
( Birago Diop in Mia Couto )

Foguetes deslumbraram o céu índigo de lua quase cheia e, depois, toda a multidão dançou junto o samba maravilhoso da Ave Maria , em torno da fogueira.
Como disse o Gil Vicente, a morte do Pierre foi um workshop inesquecível, que só mesmo o nosso João Guimarães Rosa consegue traduzir:

Ah, esta vida às não-vezes, é terrível bonita, horrorosamente, esta vida é grande!


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